quinta-feira, 30 de dezembro de 2004

Desenvolvimentos

O que é que de nós fica quando anulamos todo o exterior? Quando toda a percepção possível recai sobre a nossa própria existência? Porque esta é a única de que podemos estar certos. Mas a certeza da nossa existência não acompanha a compreensão de nós mesmos. A anulação da projecção do que somos relança a questão do que somos, pois deixamos de nos podermos identificar com a nossa própria imagem, que é o que projectamos para o exterior.1 Deixados sós para suportar todo o peso da vida, somos nós próprios que nos descobrimos. Mas é também quando deixados sós, quando nunca haveramos estado sós, que descobrimos que o que de nós fica é nulo. Toda a nossa existência se devera ao exterior, e sobre ele havera sido construída, pelo que sem ele nada somos senão mera existência. Assim, nada nos resta senão o acto de construção de nós próprios por nós próprios, através de uma atitude reflexiva sobre o sentido da nossa própria existência. É desta forma que a alma adquire um peso que lhe é próprio. A partir do momento em que o exterior deixa de constituir uma evasão de nós próprios, deixa de ter uma significação fundamental. Deixamos de fazer parte integrante e de nos identificarmos com o próprio exterior, para adquirimos uma figuração própria.
1 Exterior, em 10.9.04, às 21:08

terça-feira, 28 de dezembro de 2004

Círculo

Sabemos existir uma normalização a que estamos sujeitos, e procuramos, por isso, uma identidade própria que será, por força, diferente em si, e que levará à nossa marginalização na sociedade. Mas talvez estejamos a ver tudo ao contrário. Porventura, sonhamos com a nossa inserção nessa sociedade normalizada e, por o não conseguirmos, forçamos a nossa própria diferenciação para, deste modo, acusarmos a sociedade. A consciência crítica desenvolve um raciocínio circular.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2004

Natal

Não há celebração que faça sentido sem reflexão, principalmente quando o imaginário contemporâneo faz questão em substituir por uma figura paternal de fatos vistosos e proporções volumosas, fruto de uma pura operação de marketing que efectivamente resultou, as de três Reis Magos, sábios, que sabem por isso o que significa a modéstia, ao percorrerem quilómetros para exaltarem e oferendarem a um menino, nascido na mais humilde das condições. O Natal, mais do que um momento de partilha e união, deverá ser uma celebração do nascimento, da vida… de todas as vidas.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2004

Gato

A necessidade que sentimos de que o outro se justifique perante nós advém da nossa incapacidade de lidar com as decisões e acções alheias. Mas as relações só fazem sentido quando existem dois intervenientes, quando um se não anula perante outro, ou quando ambos se não abandonam a si próprios para se tornarem numa falsa unidade. A exaltação da diferença fundante deverá substituir a correspondência do real com o idealizado, o que não significa o culto da diferença pela diferença, mas o reconhecimento do eu enquanto indivíduo.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2004

Limitações

O nosso interesse sobre determinada área está na directa relação com as capacidades que evidenciamos, ou que nos parecem evidentes, nela. Mas de onde nos surgem estas capacidades? Serão genéticas, inatas, circunstanciais? Serão resultado de uma nossa obstinação, vontade, imposição? Por outro lado é impossível contornar o discurso sobre as limitações. Porque das nossas capacidades nos dizem limitadas, e é quando estas limitações nos interferem na acção que as capacidades se findam. Mas de que limitações falamos? Genéticas, inatas, circunstanciais? Ou aquelas que pretendemos para maior comodidade? Porque quem conheceu os seus limites, conheceu a morte. Mas a morte pela acção da realização, e não a morte pela desistência. Quem se atreve, então, a afirmar que conhece os seus limites? Admitimo-los existentes para que a vida nos seja mais fácil em descanso e angústia (o paradoxo é apenas aparente). E é só.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2004

Holocausto

Há quem veja no holocausto a prova da inexistência de Deus, pois se existisse não teria justificação a sua ausência de acção. Mas não há quem veja no holocausto a prova da iniquidade latente ao ser humano. Porque aqueles que provocaram e consentiram aquela tragédia são pessoas exactamente iguais a nós.

domingo, 19 de dezembro de 2004

Jusdivinismo

A História enquanto ciência não pode ter como objecto de estudo o passado, pois este não está já acessível. Não é o que aconteceu que interessa, mas o que ainda permanece daquilo que aconteceu. Para quê pesquisas documentais intensivas sobre a influência da Igreja Romana em Portugal, se uma concordata ainda vigora?

sexta-feira, 17 de dezembro de 2004

Chagas

Não só nos orgulhamos das nossas próprias cicatrizes, como fazemos questão em constantemente as fabricar e exibir. O processo é fácil e conhecido. Passa por pretendermos especial a nossa relação com outra pessoa, para a justificarmos, tornando uma palavra, uma despedida, um local, uma música “só nossas”, para quando essa relação já não existir evitarmos essas mesmas palavras, despedidas, locais, músicas, ou exprimirmos a nossa profunda dor aos seus mais remotos murmúrios, numa tentativa de nos humanizarmos aos olhos dos outros. (Reparem que aqui, o que caracteriza e torna especial uma relação não são duas pessoas, mas o contexto em que ela decorre.) E assim a nossa história é a história das nossas pretensas relações, no modo como nos marcam e nos forçam a excluir segmentos da realidade exterior. São traços de personalidade que se definem pela sua ausência.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2004

Pessoa

O Livro do Desassossego não poderia ter sido escrito por quem tristemente, resignadamente, teria sido deixado à solidão, mas por quem deseja essa solidão, por quem essa é a única forma de vida possível, admissível. Se for esta a tua Bíblia, então que mais ninguém o saiba, que não peças misericórdia nem a mínima atenção.

sábado, 11 de dezembro de 2004

Masoch

Recordar com nostalgia os tempos em que se não era feliz pode parecer uma estranha forma de masoquismo. Não o é. Trata-se apenas da recordação da existência da esperança da felicidade, muito tempo antes da resignação.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2004

Opções

E quando julgas estar seguro quanto a ti próprio, quanto às tuas opções, eis que algo te perturba, te força a questionar-te uma vez mais. Sim, não julgues que o que te é exterior não te afecta, mas sabe que é o que fazes a partir daqui que importa verdadeiramente.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2004

Acções

É porque nos relacionamos com outros que colocamos em causa a nossa própria acção quando em relação com esses outros. O que me leva a movimentar estes meus braços e mãos e dedos a pressionar estas teclas? Para quê escrever? Para quê escrever-te? Há verdade nas relações que importem conhecer? Adquiro vida própria quando a minha acção existe apenas porque o outro existe? É o meu erro determinado pelo outro em relação ao qual errei? Ou será que toda a minha existência é independente, que toda a minha acção adquire uma valoração própria, só minha? O que é o erro, se toda a verdade está em mim?