quinta-feira, 30 de dezembro de 2004

Desenvolvimentos

O que é que de nós fica quando anulamos todo o exterior? Quando toda a percepção possível recai sobre a nossa própria existência? Porque esta é a única de que podemos estar certos. Mas a certeza da nossa existência não acompanha a compreensão de nós mesmos. A anulação da projecção do que somos relança a questão do que somos, pois deixamos de nos podermos identificar com a nossa própria imagem, que é o que projectamos para o exterior.1 Deixados sós para suportar todo o peso da vida, somos nós próprios que nos descobrimos. Mas é também quando deixados sós, quando nunca haveramos estado sós, que descobrimos que o que de nós fica é nulo. Toda a nossa existência se devera ao exterior, e sobre ele havera sido construída, pelo que sem ele nada somos senão mera existência. Assim, nada nos resta senão o acto de construção de nós próprios por nós próprios, através de uma atitude reflexiva sobre o sentido da nossa própria existência. É desta forma que a alma adquire um peso que lhe é próprio. A partir do momento em que o exterior deixa de constituir uma evasão de nós próprios, deixa de ter uma significação fundamental. Deixamos de fazer parte integrante e de nos identificarmos com o próprio exterior, para adquirimos uma figuração própria.
1 Exterior, em 10.9.04, às 21:08

terça-feira, 28 de dezembro de 2004

Círculo

Sabemos existir uma normalização a que estamos sujeitos, e procuramos, por isso, uma identidade própria que será, por força, diferente em si, e que levará à nossa marginalização na sociedade. Mas talvez estejamos a ver tudo ao contrário. Porventura, sonhamos com a nossa inserção nessa sociedade normalizada e, por o não conseguirmos, forçamos a nossa própria diferenciação para, deste modo, acusarmos a sociedade. A consciência crítica desenvolve um raciocínio circular.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2004

Natal

Não há celebração que faça sentido sem reflexão, principalmente quando o imaginário contemporâneo faz questão em substituir por uma figura paternal de fatos vistosos e proporções volumosas, fruto de uma pura operação de marketing que efectivamente resultou, as de três Reis Magos, sábios, que sabem por isso o que significa a modéstia, ao percorrerem quilómetros para exaltarem e oferendarem a um menino, nascido na mais humilde das condições. O Natal, mais do que um momento de partilha e união, deverá ser uma celebração do nascimento, da vida… de todas as vidas.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2004

Gato

A necessidade que sentimos de que o outro se justifique perante nós advém da nossa incapacidade de lidar com as decisões e acções alheias. Mas as relações só fazem sentido quando existem dois intervenientes, quando um se não anula perante outro, ou quando ambos se não abandonam a si próprios para se tornarem numa falsa unidade. A exaltação da diferença fundante deverá substituir a correspondência do real com o idealizado, o que não significa o culto da diferença pela diferença, mas o reconhecimento do eu enquanto indivíduo.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2004

Limitações

O nosso interesse sobre determinada área está na directa relação com as capacidades que evidenciamos, ou que nos parecem evidentes, nela. Mas de onde nos surgem estas capacidades? Serão genéticas, inatas, circunstanciais? Serão resultado de uma nossa obstinação, vontade, imposição? Por outro lado é impossível contornar o discurso sobre as limitações. Porque das nossas capacidades nos dizem limitadas, e é quando estas limitações nos interferem na acção que as capacidades se findam. Mas de que limitações falamos? Genéticas, inatas, circunstanciais? Ou aquelas que pretendemos para maior comodidade? Porque quem conheceu os seus limites, conheceu a morte. Mas a morte pela acção da realização, e não a morte pela desistência. Quem se atreve, então, a afirmar que conhece os seus limites? Admitimo-los existentes para que a vida nos seja mais fácil em descanso e angústia (o paradoxo é apenas aparente). E é só.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2004

Holocausto

Há quem veja no holocausto a prova da inexistência de Deus, pois se existisse não teria justificação a sua ausência de acção. Mas não há quem veja no holocausto a prova da iniquidade latente ao ser humano. Porque aqueles que provocaram e consentiram aquela tragédia são pessoas exactamente iguais a nós.

domingo, 19 de dezembro de 2004

Jusdivinismo

A História enquanto ciência não pode ter como objecto de estudo o passado, pois este não está já acessível. Não é o que aconteceu que interessa, mas o que ainda permanece daquilo que aconteceu. Para quê pesquisas documentais intensivas sobre a influência da Igreja Romana em Portugal, se uma concordata ainda vigora?

sexta-feira, 17 de dezembro de 2004

Chagas

Não só nos orgulhamos das nossas próprias cicatrizes, como fazemos questão em constantemente as fabricar e exibir. O processo é fácil e conhecido. Passa por pretendermos especial a nossa relação com outra pessoa, para a justificarmos, tornando uma palavra, uma despedida, um local, uma música “só nossas”, para quando essa relação já não existir evitarmos essas mesmas palavras, despedidas, locais, músicas, ou exprimirmos a nossa profunda dor aos seus mais remotos murmúrios, numa tentativa de nos humanizarmos aos olhos dos outros. (Reparem que aqui, o que caracteriza e torna especial uma relação não são duas pessoas, mas o contexto em que ela decorre.) E assim a nossa história é a história das nossas pretensas relações, no modo como nos marcam e nos forçam a excluir segmentos da realidade exterior. São traços de personalidade que se definem pela sua ausência.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2004

Pessoa

O Livro do Desassossego não poderia ter sido escrito por quem tristemente, resignadamente, teria sido deixado à solidão, mas por quem deseja essa solidão, por quem essa é a única forma de vida possível, admissível. Se for esta a tua Bíblia, então que mais ninguém o saiba, que não peças misericórdia nem a mínima atenção.

sábado, 11 de dezembro de 2004

Masoch

Recordar com nostalgia os tempos em que se não era feliz pode parecer uma estranha forma de masoquismo. Não o é. Trata-se apenas da recordação da existência da esperança da felicidade, muito tempo antes da resignação.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2004

Opções

E quando julgas estar seguro quanto a ti próprio, quanto às tuas opções, eis que algo te perturba, te força a questionar-te uma vez mais. Sim, não julgues que o que te é exterior não te afecta, mas sabe que é o que fazes a partir daqui que importa verdadeiramente.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2004

Acções

É porque nos relacionamos com outros que colocamos em causa a nossa própria acção quando em relação com esses outros. O que me leva a movimentar estes meus braços e mãos e dedos a pressionar estas teclas? Para quê escrever? Para quê escrever-te? Há verdade nas relações que importem conhecer? Adquiro vida própria quando a minha acção existe apenas porque o outro existe? É o meu erro determinado pelo outro em relação ao qual errei? Ou será que toda a minha existência é independente, que toda a minha acção adquire uma valoração própria, só minha? O que é o erro, se toda a verdade está em mim?

terça-feira, 30 de novembro de 2004

Ânimo

Oh Vida! Oh Espanto! Oh Deus! Soubesses a fome que de ti tenho, e me consome. Ah, juro que virarei o Mundo do avesso e que em mim te farás verbo e carne.

segunda-feira, 29 de novembro de 2004

Sente

Pára. Não escutes. Não ouças. Não olhes. Não vejas. Aquilo que sentes é a tua há muito perdida inocência, quando nada tinha significado mas tudo fazia sentido.

sexta-feira, 26 de novembro de 2004

Acusação

Há quem acuse aqueles que permanecem silenciosos na defesa dos direitos adquiridos, na defesa do que é justo, na defesa dos seus próprios interesses, que pretendem universais. Há quem acuse aqueles que estrebucham propaganda panfletária reivindicativa, pela qual visam obter as maiores mordomias através do menor esforço. Entre os dois, não será mais razoável aquele que não acusa?

quinta-feira, 25 de novembro de 2004

Logros

O homem sempre foi um ser teleológico. Sempre caminhou para um futuro que sabia determinado, e sempre soube que não seria ele próprio a viver essa finalidade para a qual actuara e em função da qual vivera. Podemos imaginar a frustração de Marx se este soubesse que, afinal, a humanidade não caminha inevitavelmente para a igualdade de classes.

terça-feira, 23 de novembro de 2004

Desglobalização

A perfeição é a unidade. É por esse motivo que a humanidade é tão plural.

domingo, 21 de novembro de 2004

Arafat

Reparo agora que usam a palavra “autodeterminação” com demasiada veleidade. Porque esta pressupõe uma força independente que se impõe do interior para o exterior. Mas a sociedade não aceita que se lhe imponham, enquanto a determinação que se pretende é precisamente no seio da sociedade. A Palestina é um exemplo de uma nação que nunca se autodeterminará, antes sendo a própria comunidade internacional que tomará, ou não, a iniciativa de a integrar.

quinta-feira, 18 de novembro de 2004

Cosmos

A ciência assenta no pressuposto de que a natureza, enquanto conjunto de fenómenos a ocorrer no mundo, obedece a leis fixas, dadas determinadas composições sujeitas a um movimento e interactividade relacionais. Esta rigidez de comportamentos pode ser encarada como um dado adquirido do próprio mundo, ou como uma dotação de uma outra qualquer existência (como seja Deus). Ou o mundo é auto-suficiente e a natureza passível de ser considerada uma divindade em si – panteísmo – ou depende de uma existência que lhe é superior – deísmo. Penso que é dentro destes contextos que deve ser questionada a intrigante existência humana. Ou ela é um acidente da natureza ou, pelo contrário, uma determinação que, enquanto tal, adquire uma significação que lhe é dada.

quarta-feira, 17 de novembro de 2004

Sujeição

Respeita os mais velhos, que os mais novos o não merecem. Honra a teu pai e tua mãe, e desonra a teus filhos.

segunda-feira, 15 de novembro de 2004

sábado, 13 de novembro de 2004

Norma

O ódio à normalidade advém da incapacidade de se ser normal. É uma forma de nos afirmarmos junto de quem nos segrega. Porque caso o não fôssemos, ou houvéramos sido, teríamos todo o gosto pela normalidade.

quinta-feira, 11 de novembro de 2004

Ruptura

Há estados de conflito interior que exigem uma ruptura com o exterior. É quando o quotidiano nos enclausura, quando o hábito nos comprime, quando a vida nos reclama.

quarta-feira, 10 de novembro de 2004

Ilusões

A desilusão deveria ser a maior felicidade humana. Só o não é porque preferimos a felicidade ignorante, a realidade aparente, a falsa correspondência com as nossas aspirações.

segunda-feira, 8 de novembro de 2004

Limite

Não basta fazer bem aquilo que se faz. É preciso fazer sempre mais e melhor, até ao sem limite das nossas capacidades.

domingo, 7 de novembro de 2004

Logos

A racionalidade é a maior fatalidade humana. Quando a não observamos no mundo tangível, imaginamos uma ordem absoluta que nos transcende. E se a razão não tem razão?

sexta-feira, 5 de novembro de 2004

Amizades

Encontramos uma amizade quando nos sentimos suficientemente confortáveis para nada dizer. Mas as amizades também acabam quando já nada há a dizer, ou quando já nada vale a pena ser dito.

terça-feira, 2 de novembro de 2004

Imortalidade

Se há questão que deverá sempre ser levantada, é a questão sobre a vida. Só esta nos poderá fazer tender para aquilo que somos, os nossos sonhos, amores, dores e ânsias. A questão sobre a morte não tem sentido, porque a própria morte não tem sentido. Não podemos pensar a ausência de nós mesmos, porque ao pensarmos-la estamos já a ser alguma coisa1. Mas e a morte em vida? Sermos sem sonhos, sem amores, sem dores e ânsias2? E a vida na morte, que é aquela pela qual actuamos, de modo a que não sejamos esquecidos, de modo a que continuemos presentes, mesmo depois de já não sermos3?

1João César das Neves, Rascunho da Vida (dn 1 de Novembro de 2004)
2Vergílio Ferreira, Posfácio à obra Apelo da Noite
3Milan Kundera, A Imortalidade

segunda-feira, 1 de novembro de 2004

Fátima

Onde a paixão pela Regina Sacratissimi Rosarii? No antes e depois de um estalo dado a quem jurámos amar? Onde o fervor religioso? No objecto de plástico comprado a um euro no quiosque da esquina? Onde o respeito por quem dizem tudo dever? Nos escassos segundos de permanência numa basílica, enquanto se espera pelo momento certo para um disparo fotográfico? (Reduzir o transcendente a uma forma sólida, visível, tangível, acessível)

sexta-feira, 29 de outubro de 2004

Revoluções

Não será a consciência social uma consequência inevitável de uma falta de consciência individual? Mudar o mundo para nos não mudarmos a nós.

quarta-feira, 27 de outubro de 2004

Loucura

A loucura é a observância de toda a realidade caótica, e o agir em conformidade, que é nenhuma. Porque toda a realidade não tem sentido, e assim um gesto nosso é igual a qualquer outro.

domingo, 24 de outubro de 2004

Falácia

Se aquilo em que acredito estivesse errado, então não acreditaria naquilo em que acredito. Logo, aquilo em que acredito está certo.

terça-feira, 19 de outubro de 2004

Tu

É estranho. Sei que a pele que toco, o calor que dela emana, os pêlos que nela se eriçam com o contacto, não são o que te define. Mas não consigo deixar de sentir um profundo desejo por esse corpo que não és tu.

segunda-feira, 18 de outubro de 2004

Eu

Porque não somos nós suficientes para sermos? Porque precisamos da vida de outro para que nos sintamos vivos? Porque rimos quando vemos rir? Porque bocejamos quando vemos bocejar? Porque necessitamos da aprovação do outro para sermos legítimos? A vida não o é em solidão? A vida é um acto social? Eu sou porque tu és?

sábado, 16 de outubro de 2004

quinta-feira, 14 de outubro de 2004

Vazio

Um vazio estrutural é a sorte de quem procura o sentimento de preenchimento nesse mesmo vazio. Assim, este assume todas as formas de expressão que são as do humano, tornando as suas inter-relações numa troca vazia de vazio. Vale mais o silêncio.

domingo, 10 de outubro de 2004

Bússola

Já te não sei procurar. Já te não sei encontrar. O sentido das minhas escolhas é não o ter. O sentido das minhas escolhas é andar perdido e esperar um dia não o estar.

segunda-feira, 4 de outubro de 2004

Palavra

Uma palavra que se dissipa no vento é ainda um acto irredutível. Jamais a não poderias ter dito, a partir do momento em que a disseste. Fizeste-a existir. Está aí para quem a consiga detectar.

domingo, 3 de outubro de 2004

Racismo

O homem continua tão profundamente racista como sempre o foi. Um Husky é muito mais bonito que um Buldogue.

sexta-feira, 1 de outubro de 2004

Remoto

Que palavras, que gestos, que expressões, quando a morte acontece a quem nos é alheio? Porque a morte é sempre um facto da vida, excepto quando a vemos em frente dos nossos olhos, quando quase a tocamos (quando por vezes a queremos tocar).

quinta-feira, 30 de setembro de 2004

Quem

Pergunto-me se ainda me conheces se me olhares nos olhos, se ainda sabes o que sinto (mas se nem eu próprio sei o que sinto!). Provavelmente, tudo quanto digo é na esperança de ouvir a resposta que quero.

quarta-feira, 29 de setembro de 2004

Estética

O gosto pela estética na vida é apenas cultivado quando confinados à obrigatória solidão. É, então, uma forma de nos pensarmos em controlo da nossa própria vida, uma forma de iludir os outros em pensar que se trata de uma nossa opção.

terça-feira, 28 de setembro de 2004

Nascente

Por onde passastes já, a tua marca indelével. Hei-de descobrir onde nasceste, a tua origem. Encontrar-te-ei em pureza, com toda uma marca por deixar.

domingo, 26 de setembro de 2004

sábado, 25 de setembro de 2004

Retratos

Há, no contacto com retratos em movimento, uma aproximação à existência e um afastamento da realidade. Porque não são sinónimos. Quando nos sentimos existir, não o ligamos a uma imagem exterior, mas a uma vivência intelectual. Descobrir os nossos movimentos, as nossas expressões, é descobrir que existimos no mundo. Mas na observância deste mundo apenas descobrimos a mecânica dos gestos. Lança-se, pois, novamente a questão do que somos e porque o somos. A imagem é o retrato do que representamos.


Sobre CHANT portraits, de Luciana Fina

sexta-feira, 24 de setembro de 2004

Contemplação

Foi quando mais te amei. Num dia de chuva, em suspenso, de guarda-chuva aberto em uma das mãos, observei o teu riso, sempre espontâneo. Sabia que não me sabias ali. Afastei-me sem que o soubesses, sem querer que o soubesses. Foi quando mais te amei.

quinta-feira, 23 de setembro de 2004

Mentira

Habituámo-nos a pensar que são as intenções por detrás dos actos que mais importam. Mas só temos acesso às manifestações, e se estas não coincidem com a intenção, dificilmente acreditaremos nela. Temos o acto, as coisas aconteceram assim, independentemente das palavras do outro dizerem o contrário.

quarta-feira, 22 de setembro de 2004

Contentamento

Levamos a vida a tentar juntar momentos de estúpida alegria, e chamamos-lhe felicidade. Quanto mais momentos conseguirmos juntar, maior a felicidade atingida na vida. É como uma colecção de cromos. Para se ser constantemente feliz há que se ser constantemente estúpido. Alegres e contentes. Contentas-te?

terça-feira, 21 de setembro de 2004

segunda-feira, 20 de setembro de 2004

Emancipação

Recordo-me de quando encontrar-te me era urgente. Era, então, uma felicidade. Não uma felicidade qualquer, mas uma felicidade salvífica. O meu amor por ti era a minha dependência de ti.

domingo, 19 de setembro de 2004

sexta-feira, 17 de setembro de 2004

Favor

Reparem bem nos vossos actos de caridade, de solidariedade, de ajuda, de amizade. O maior poder jamais concedido a alguém é o de ser-se necessário e não se necessitar.

quinta-feira, 16 de setembro de 2004

Desconfiança

Porque receiam as pessoas tomar responsabilidade sobre o que lhes não pertence? Porque se evadem? Fogem para as não ter de enfrentar, ou com elas conviver. Fingem que não existem, ou, quando se lembram, olham de soslaio, com desconfiança.

quarta-feira, 15 de setembro de 2004

Crença

Acreditas que existe. Queres alcançá-lo. Logo, irás alcançá-lo. Mas aquilo que alcanças é um mito que criastes para a tua própria satisfação.

terça-feira, 14 de setembro de 2004

Viver

O que é toda a vida em sociedade senão um mais acessível entretenimento? A solidão pesa, porque a verdade, a vida, é tão pesada quanto ela. A vida é maior do que a podemos suportar, e por isso tudo fazemos para a esquecer. E é quando sentimos não viver que o descobrimos. É quando toda a ilusão se torna demasiado óbvia. Mas o que é viver? O que é necessário para que nos sintamos vivos?

segunda-feira, 13 de setembro de 2004

Impossível

Como é possível, depois da apropriação do corpo de outrem, conseguir viver só? – não sou já suficiente - Mais, como é possível sobreviver à rejeição depois do despojamento físico? – consenti na minha própria violação - Como é possível viver depois de o mundo acabar?

domingo, 12 de setembro de 2004

Vida

A vida é o que em mim é maior do que eu.

Ambição

Há o excesso de nós, que é o que pretende realizar, e há o sem sentido dessa realização. Há o excesso de nós em tudo quanto não somos, e há o sem sentido de existirmos e sermos nada. Porque a realização que pretendemos se situa fora de nós, que é onde nada existe.

sábado, 11 de setembro de 2004

Identificação

No acto da identificação, há sempre alguém que se move no sentido dessa mesma identificação. Porque ninguém pode sentir o que só nós sentimos, sendo nós que o sentimos. Mas é melhor que nos identifiquemos com alguém, pois minora a responsabilidade de quem somos, sendo nós outro que não nós próprios.

sexta-feira, 10 de setembro de 2004

Exterior

O que é que de nós fica quando anulamos todo o exterior? Quando toda a percepção possível recai sobre a nossa própria existência? Porque esta é a única de que podemos estar certos. Mas a certeza da nossa existência não acompanha a compreensão de nós mesmos. A anulação da projecção do que somos relança a questão do que somos, pois deixamos de nos podermos identificar com a nossa própria imagem, que é o que projectamos para o exterior.

quinta-feira, 9 de setembro de 2004

Acusação

Onde quer que esteja, o mesmo olhar acusatório. Quem és? Não te conheço. O que estás aí a fazer? Volta para onde pertences, para onde a tua presença não é aberrante. Incomodas-me. Volta às normas que te foram estabelecidas.

segunda-feira, 6 de setembro de 2004

Abismo

Fecha os olhos, e de imediato procuras alcançar o mundo com as mãos, com o corpo. Eram os olhos que te conferiam a tangibilidade sem necessidade de te moveres. Agora dá um passo em frente, e apercebe-te que o mundo não está já aí, ao mesmo nível da perna que te mantém. Como sentes o abismo?

domingo, 5 de setembro de 2004

Mácula

Passei toda a noite fora. Trago cheiros impregnados no corpo, imagens estampadas na cara. Não vou lavar-me (não vou evadir-me), vou deitar-me a teu lado até que sintas a minha presença. Quero que saibas onde estive, que me olhes com esses teus olhos sem mácula.

Dissimulação

Num gesto de fingida ternura, seguida de trivial pergunta sobre a minha tristeza, as lágrimas são quase inevitáveis. Mas afinal a preocupação e a ternura eram apenas fingidas... não há razão para agravos.

sábado, 4 de setembro de 2004

Silêncio

É no silêncio que mais nos escutamos. E é precisamente por isso que o não suportamos. As verdades que custam ouvir são aquelas que se não proclamam.

Lágrimas

Que pela tua face correm, enquanto cerras violentamente os teus olhos num vão esforço de não veres. Mas não sei aquilo que vês e não queres ver. Estou malditamente preso a este corpo, e só com ele te posso reconfortar.

sexta-feira, 3 de setembro de 2004

Caneta

Já a esquecemos de admirar. Observar de perto o seu contacto com uma folha de papel, a sua marca enquanto nesta a deslizamos com precisão. Já nos esquecemos do excessivo esforço de concentração para dominar aquela mão, que mais parece não nos pertencer.

Absurdo

As palavras que te adivinho, são aquelas que enuncias. Observo os teus gestos mecânicos. São os que me dizem do teu absurdo. De tudo quanto para além de mim existe.

Relógio

Nunca antes houvera observado um relógio. Descobri-lhe a sua cadência constante, o seu ritmo concertante. Quem o inventou não o fez de acordo com a vida.

quinta-feira, 2 de setembro de 2004

Intimidade

O que é este corpo que sinto estranho ao meu? Que responde ao meu contacto (estremece) e me estimula só do seu calor? Não deveria existir vida além de mim, e no entanto sinto-me sem vida perante ti.

quarta-feira, 1 de setembro de 2004

Morte

Uma existência vazia, solitária. A consciência da ausência. Um absoluto nada.

Vida

A solução para o enigma da vida apresenta-se de ilimitadas formas. O fulgor físico, o fulgor mental. A presença de vontade, a presença de actos. A possibilidade de que nada existe para além do que percepcionamos, a possibilidade de tudo quanto percepcionamos não passar de mera ilusão. A vida como forma, a vida como o que forma. É isso. Não será? A história das ideologias evoluiu dicotomicamente, e radicalizou dois discursos aos quais não criamos uma alternativa credível.

terça-feira, 31 de agosto de 2004

Justificação

Existe uma escrupulosa necessidade de nos justificarmos. Não só perante os outros, mas também perante nós próprios. É assim que procuramos razões para cada um dos nossos actos, numa tentativa de nos tornarmos plausíveis.

Claustro

Passamos a vida como num claustro. Enclausurados no mais belo dos jardins, indiferentes observamos quadros de vidas que não são nossas em cada uma das galerias. Onde o sofrimento não é sofrimento, mas apenas a imagem dele. Apenas o jardim e a fonte, no centro, são reais.

segunda-feira, 30 de agosto de 2004

Mito

O mais trágico numa relação brutalmente interrompida é que não se chegou a aprender o desamor. A aprender que “afinal não amávamos” ou que “afinal não éramos amados”. É quando o outro atinge as estruturas do mito, e quando a angústia de algo que ficou por cumprir torna eterno aquilo que o não é. As relações eternas só o são com a própria eternidade.

domingo, 29 de agosto de 2004

Romancistas

Somos os maiores romancistas de nós próprios, porque não há gesto nosso que não ficcionemos. Talvez por isso os conscienciosos tenham um “problema de auto-estima”, enquanto os outros não só vivam bem consigo próprios como são até as desgraçadas vítimas da sociedade.